"Solidão é não ser eu. É não ser o outro.”
(Clarice Lispector)
Ele era apenas o porteiro do teatro.
Para aquela tarde
chuvosa de inverno, estava reservada uma sessão.
A sessão em que
deveria representar o célebre Rafael Silveira, famoso e consagrado
ator dramático.
O ato consistiria em uma matinê especial,
suplementar.
Neste ato único, Rafael recitaria um monólogo longo,
acompanhado logo após, à maneira de conclusão, por uma pantomima,
em que o célebre ator também era um dos expoentes, entre seus
pares.
Contudo, fazia muito frio. E chovia. Do hall da entrada, ele,
sentado a uma cadeira diante de uma mesa de mogno antiga, estava a
dormitar.
De tempos em tempos, como sua cabeça encanecida descaísse
sobre o peito do uniforme azul, erguia-a num rompante, quase
convulso, pois um vislumbre de sua obrigação e atitude como
porteiro o avisava que tinha de manter-se em vigília e de expressão
serena, para o caso de aparecer gente, provável audiência para a
sessão da tarde.
Foi sorte.
Ele lia uma revista em quadrinhos,
trocada por outra de cruzadas e labirintos, num sebo, quando o
diretor, de smoking aberto na gola, sem a gravata borboleta, a camisa
do smoking desabotoada e com alguns pingos de molho de tomate, o
procurou, com um ar de preocupação.
Ele congratulou-se por não
ser pego a roncar ou, dormitando, babando sobre o uniforme.
O
diretor falou: (como se o caso fosse uma bagatela, uma ação tão
simples como subir uma escada ou sorrir para um espelho): “O senhor
Rafael não pode vir”.
E , com uma expressão que não escondia o
desprezo, por ambos, pelo porteiro e pelo artista: “Ele só gosta
de subir ao palco contando com o aplauso, a apoteose de júbilo
egotista e vaidoso recebida, até descer o pano”.
“Você não
poderia substituí-lo? Eis o que tem a fazer: vá, enfrente o palco,
corajosa e tranquilamente.
Invente um monólogo qualquer. Depois...
Depois faça umas graças – pode constar de bramidos... Deixa
ver...Uivos...Relinchos.
Sapateie, dance frenético como um cossaco,
careteie e bufe, ao seu gosto.
Quanto mais tolices representar, sem
perturbações, maior sua chance de sucesso – ou ao menos não ser
vaiado.
Ele viu-se de súbito tomado de uma fortíssima
ansiedade, e aflição, como jamais havia sentido em toda sua vida,
modesta e anônima, vida de solteirão pobre, em raras vezes,
remediado.
Mas de imediato decidiu (não fosse ser despedido, por
rebater a proposta com uma negativa).
Talvez, tacitamente, o homem
obeso do smoking lhe reservasse uma promoção ou aumento de salário
ou, ao menos, a dispensa de lavar as latrinas do teatro, domingos ao
entardecer.
“Sim, senhor. Senhor, às quatro e trinta o senhor
disse?”
“ Sim, isto mesmo.”
Até lá, seu dia foi inteiramente modificado.
Sentia
como tivesse de embrenhar-se num campo de batalhas medieval, sem
estar certo da fortaleza de sua couraça, elmo ou espada.
Ia e
voltava no largo e marmóreo espaço do hall, por vezes contemplando
detidamente duas estátuas femininas mutiladas de gesso, cópias
ruins de modelos gregos.
Fumou.
Fumou uma carteira como se todos os
cigarros fossem um só.
Ao chegar ao último, surpreendeu-se – e
também observou que talvez o tempo todo seu rosto se crispasse, os
maxilares apertados como antes de uma carga de cavalaria- e, com o
coração aos pulos, verificou que já eram três e cinquenta.
Sem
entender o que aquele pequeno círculo atado a seu pulso estava
afinal a fazer ali (assim um pássaro maníaco percorre a superfície
agitada de um lago, em círculos, sempre), com passo apressado
dirigiu-se aos bastidores. Um corredor repleto de fantasias ,
máscaras diversas e roupas estrambóticas ou comuns atirados cá e
lá levava a um dos camarins.
Não havia ninguém ali, e isto não
surpreendia. O diretor também sumira, como um mensageiro de más
novas difíceis de superar, mensageiro evanescente como instáveis
nuvens negras. Colocou-se logo atrás do pano de boca.
Olhou, ergueu
num átimo sua cabeça, e mirou o teto dos bastidores devastados,
exato naquele ponto.
Discerniu roldanas, e, um tanto mais atrás,
quadros de paisagens diversas sustentadas também por jogos de
roldanas e cordas.
Suspirou.
Ficou um tanto mais hirto e
compenetrado (em que?).
Como que movido por si mesmo, o pano
ergueu-se, umas cortinas velhas remendadas puídas aqui e lá,
marrons a que a sujeira de muitas estações e espetáculos tornara
já quase imprestáveis, mesmo por isso não perdiam o seu caráter
intimidador.
Ele sentiu-se um astronauta , abrindo a porta de sua
cápsula, para entrar dentro de uma grande nave alienígena, mas
sorrateiramente disfarçada, talvez habitada por velhos espíritos
cuja silenciosa, invisível zombaria ocultaria a vontade de vê-lo
fracassar.
Sim, era o que transpareciam, afinal, em seus objetos
triviais, de uso quotidiano, dançantes em imobilidade quotidiana
que por vezes nos parece ocultar alguma resistência hostil, as
cadeiras de madeira estofada, as galerias no andar de cima exibindo
filigranas nos frisos e apenas, do palco, visíveis os espaldares de
poltronas, ostensivos em velho luxo, como tronos de reis e rainhas, e
ainda, sim, dando luz a este lugar como um olhar febril irradiante,
lamparinas amareladas como que de trens imóveis em brumas de
estações perdidas.
Ele lançou um olhar um tanto assustado ao auditório.
Estava vazio, exceto por uma criança maltrapilha, que, numa das
poltronas do auditório térreo, aos fundos, olhava o palco (e,
talvez , a ele) como que a meditar sobre a condição dele e de todos
os ausentes e possíveis presentes, com fisionomia pálida e
inexpressiva, de peixe morto, de busto de sábio filósofo, caído na
água de litoral subitamente trazida à tona.
Tal criança, ao notar a sua presença no palco – na
verdade, como quem percebe algo maior que uma mosca, à distância -
logo se pôs de pé, sacudiu o que sentia ou pensava em sua cabeça
com as duas mãos, a modo de uma escova na cabeleira rebelde castanha
e, antes de ir-se embora, apanhou ao pé da poltrona, uma caixa de
engraxar sapatos.
Não havia nada em todo o teatro além de
infinitesimais partículas de poeira, movendo-se em meio a odores
velhos de perfumes caros ou baratos, sob os halos amarelados de
tantas luminárias altas e baixas. Relógio talvez mais seguro, mas
difícil de consultar.
Em todo caso, pensou ele, mais sentiu que pensou, as
palavras não chegando a se formar em sua cabeça, ele tinha de
cumprir com sua obrigação. Acreditava nisso: na obrigação moral,
a ética do dever.
Pigarreou respeitosamente. Não se sentia sozinho , e
isto era , por uma parte acalentador e bom, e por outra ruim e
perigoso. Testou a voz. Fez: “Olá, como vão todos?” E, ao
dizê-lo, sentiu aquela frase repercutir estranhamente em si mesmo.
Como se sua alma fosse composta de um bando de gente incógnita, que
conversava atarefadamente em corredores intercomunicantes como
artérias e veias, em outra dimensão à qual fora alçado. A partir
daí, iniciou a falar, não de si, assunto corriqueiro para quem o
vê bem de perto, mas de seus sonhos: disse: “na semana passada
sonhei que minha avó estava viva e, com seu riso, animava um sarau
em que uns poucos amigos estavam à vontade, tomando chimarrão. Um
cão preto se meteu entre as cadeiras da mesa e engoliu um pequeno
escorpião. Isto fez com que vomitasse uma larva, a qual se
transubstanciou em uma linda árvore, de flores roxas, em que pousava
uma miríade surpreendentemente, fantasticamente bela, de borboletas,
todas azuis, faiscantemente azuis, e o pulsar ritmico delas parecia
que conseguiria levar para os altos ares não só a árvore, como o
cenário todo. Sim, o sonho também era um palco de teatro, atrás
do qual talvez houvesse outros tantos palcos e teatros, a perder de
vista e noção, eu senti isso, adivinhei, como um cego sente que há
uma escada quando seu pé toca o primeiro degrau”.
Repetiu, um tanto com a boca seca: “Sonhei
também...”.
“Bem, sonhei que em uma multidão incontável de
pessoas, dispostas em cores sombrias à beira de um rio, a minha
sombra, apenas a minha sombra, dentre tantas, procurava por outra que
se lhe assemelhasse, mas aí soava um telefone de um orelhão, que
até aquele instante não reparar, e que ficava à margem do mesmo
rio, e toda a multidão se encaminhou, atropelando-se uns aos outros
às vezes ferindo-se gravemente, todos com o intuito de atender o
telefone, mesmo que eu não soubesse por que, poxa, eu também tinha
a mesma urgência de atender o tal telefone...”
Mas notou que a
ausência , no auditório, o escutara e o vira, quem sabe com alguma
reprovação... Uma irracional e hostil desaprovação, pairando ,
por todos os cantos do recinto.
Chegou a cogitar em fazer, urdir, tecer alguns gestos à
toa, no ar, como um aprendiz canhestro de Chaplin. Mas nem nos dias
mais animadores de sua vida foi presunçoso sem ter pagado caro, bem
caro por isso. Talvez um diretor geral de todos os espetáculos não
o permitisse, impunemente. Ele sentiu isso, mas optou por não se
desanimar. Seus braços descaíram.
Juntou as mãos, num gesto em
que uma mão abrigava e deixava junto a si a outra, um espaço oco
entre ambas, como se a guardar ali uma pomba, viva, saudável.
Inclinou todo o torso, como um cortesão de séculos
passados, diante de alguma bela aristocrata a quem distraiu de modo
diverso, durante um lapso. Reergueu o torso, e provavelmente voltou
a seu posto, no hall.
Nenhum comentário:
Postar um comentário