sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Às quatro e meia - um conto de Glauco Schneider

 "Solidão é não ser eu. É não ser o outro.”
(Clarice Lispector)


Ele era apenas o porteiro do teatro. 
Para aquela tarde chuvosa de inverno, estava reservada uma sessão. 
A sessão em que deveria representar o célebre Rafael Silveira, famoso e consagrado ator dramático. 
O ato consistiria em uma matinê especial, suplementar. 
Neste ato único, Rafael recitaria um monólogo longo, acompanhado logo após, à maneira de conclusão, por uma pantomima, em que o célebre ator também era um dos expoentes, entre seus pares. 
Contudo, fazia muito frio. E chovia. Do hall da entrada, ele, sentado a uma cadeira diante de uma mesa de mogno antiga, estava a dormitar. 

De tempos em tempos, como sua cabeça encanecida descaísse sobre o peito do uniforme azul, erguia-a num rompante, quase convulso, pois um vislumbre de sua obrigação e atitude como porteiro o avisava que tinha de manter-se em vigília e de expressão serena, para o caso de aparecer gente, provável audiência para a sessão da tarde. 
Foi sorte. 
Ele lia uma revista em quadrinhos, trocada por outra de cruzadas e labirintos, num sebo, quando o diretor, de smoking aberto na gola, sem a gravata borboleta, a camisa do smoking desabotoada e com alguns pingos de molho de tomate, o procurou, com um ar de preocupação. 
Ele congratulou-se por não ser pego a roncar ou, dormitando, babando sobre o uniforme.  
O diretor falou: (como se o caso fosse uma bagatela, uma ação tão simples como subir uma escada ou sorrir para um espelho): “O senhor Rafael não pode vir”.  
E , com uma expressão que não escondia o desprezo, por ambos, pelo porteiro e pelo artista: “Ele só gosta de subir ao palco contando com o aplauso, a apoteose de júbilo egotista e vaidoso recebida, até descer o pano”.  
“Você não poderia substituí-lo? Eis o que tem a fazer: vá, enfrente o palco, corajosa e tranquilamente. 
Invente um monólogo qualquer. Depois... Depois faça umas graças – pode constar de bramidos... Deixa ver...Uivos...Relinchos. 
Sapateie, dance frenético como um cossaco, careteie e bufe, ao seu gosto. 
Quanto mais tolices representar, sem perturbações, maior sua chance de sucesso – ou ao menos não ser vaiado.

 Ele viu-se de súbito tomado de uma fortíssima ansiedade, e aflição, como jamais havia sentido em toda sua vida, modesta e anônima, vida de solteirão pobre, em raras vezes, remediado. 
Mas de imediato decidiu (não fosse ser despedido, por rebater a proposta com uma negativa). 
Talvez, tacitamente, o homem obeso do smoking lhe reservasse uma promoção ou aumento de salário ou, ao menos, a dispensa de lavar as latrinas do teatro, domingos ao entardecer.
“Sim, senhor. Senhor, às quatro e trinta o senhor disse?”
“ Sim, isto mesmo.”

 Até lá, seu dia foi inteiramente modificado. 
Sentia como tivesse de embrenhar-se num campo de batalhas medieval, sem estar certo da fortaleza de sua couraça, elmo ou espada. 
Ia e voltava no largo e marmóreo espaço do hall, por vezes contemplando detidamente duas estátuas femininas mutiladas de gesso, cópias ruins de modelos gregos. 
Fumou. 
Fumou uma carteira como se todos os cigarros fossem um só.  
Ao chegar ao último, surpreendeu-se – e também observou que talvez o tempo todo seu rosto se crispasse, os maxilares apertados como antes de uma carga de cavalaria- e, com o coração aos pulos, verificou que já eram três e cinquenta.  
Sem entender o que aquele pequeno círculo atado a seu pulso estava afinal a fazer ali (assim um pássaro maníaco percorre a superfície agitada de um lago, em círculos, sempre), com passo apressado dirigiu-se aos bastidores. Um corredor repleto de fantasias , máscaras diversas e roupas estrambóticas ou comuns atirados cá e lá levava a um dos camarins. 
Não havia ninguém ali, e isto não surpreendia. O diretor também sumira, como um mensageiro de más novas difíceis de superar, mensageiro evanescente como instáveis nuvens negras. Colocou-se logo atrás do pano de boca. 
Olhou, ergueu num átimo sua cabeça, e mirou o teto dos bastidores devastados, exato naquele ponto.  
Discerniu roldanas, e, um tanto mais atrás, quadros de paisagens diversas sustentadas também por jogos de roldanas e cordas. 
Suspirou. 
Ficou um tanto mais hirto e compenetrado (em que?).  
Como que movido por si mesmo, o pano ergueu-se, umas cortinas velhas remendadas puídas aqui e lá, marrons a que a sujeira de muitas estações e espetáculos tornara já quase imprestáveis, mesmo por isso não perdiam o seu caráter intimidador.  

Ele sentiu-se um astronauta , abrindo a porta de sua cápsula, para entrar dentro de uma grande nave alienígena, mas sorrateiramente disfarçada, talvez habitada por velhos espíritos cuja silenciosa, invisível zombaria ocultaria a vontade de vê-lo fracassar.  
Sim, era o que transpareciam, afinal, em seus objetos triviais, de uso quotidiano, dançantes em imobilidade quotidiana que por vezes nos parece ocultar alguma resistência hostil, as cadeiras de madeira estofada, as galerias no andar de cima exibindo filigranas nos frisos e apenas, do palco, visíveis os espaldares de poltronas, ostensivos em velho luxo, como tronos de reis e rainhas, e ainda, sim, dando luz a este lugar como um olhar febril irradiante, lamparinas amareladas como que de trens imóveis em brumas de estações perdidas.

Ele lançou um olhar um tanto assustado ao auditório. Estava vazio, exceto por uma criança maltrapilha, que, numa das poltronas do auditório térreo, aos fundos, olhava o palco (e, talvez , a ele) como que a meditar sobre a condição dele e de todos os ausentes e possíveis presentes, com fisionomia pálida e inexpressiva, de peixe morto, de busto de sábio filósofo, caído na água de litoral subitamente trazida à tona.

Tal criança, ao notar a sua presença no palco – na verdade, como quem percebe algo maior que uma mosca, à distância - logo se pôs de pé, sacudiu o que sentia ou pensava em sua cabeça com as duas mãos, a modo de uma escova na cabeleira rebelde castanha e, antes de ir-se embora, apanhou ao pé da poltrona, uma caixa de engraxar sapatos.

Não havia nada em todo o teatro além de infinitesimais partículas de poeira, movendo-se em meio a odores velhos de perfumes caros ou baratos, sob os halos amarelados de tantas luminárias altas e baixas. Relógio talvez mais seguro, mas difícil de consultar.

Em todo caso, pensou ele, mais sentiu que pensou, as palavras não chegando a se formar em sua cabeça, ele tinha de cumprir com sua obrigação. Acreditava nisso: na obrigação moral, a ética do dever.

 Pigarreou respeitosamente. Não se sentia sozinho , e isto era , por uma parte acalentador e bom, e por outra ruim e perigoso. Testou a voz. Fez: “Olá, como vão todos?” E, ao dizê-lo, sentiu aquela frase repercutir estranhamente em si mesmo. Como se sua alma fosse composta de um bando de gente incógnita, que conversava atarefadamente em corredores intercomunicantes como artérias e veias, em outra dimensão à qual fora alçado. A partir daí, iniciou a falar, não de si, assunto corriqueiro para quem o vê bem de perto, mas de seus sonhos: disse: “na semana passada sonhei que minha avó estava viva e, com seu riso, animava um sarau em que uns poucos amigos estavam à vontade, tomando chimarrão. Um cão preto se meteu entre as cadeiras da mesa e engoliu um pequeno escorpião. Isto fez com que vomitasse uma larva, a qual se transubstanciou em uma linda árvore, de flores roxas, em que pousava uma miríade surpreendentemente, fantasticamente bela, de borboletas, todas azuis, faiscantemente azuis, e o pulsar ritmico delas parecia que conseguiria levar para os altos ares não só a árvore, como o cenário todo. Sim, o sonho também era um palco de teatro, atrás do qual talvez houvesse outros tantos palcos e teatros, a perder de vista e noção, eu senti isso, adivinhei, como um cego sente que há uma escada quando seu pé toca o primeiro degrau”.

Repetiu, um tanto com a boca seca: “Sonhei também...”. 
“Bem, sonhei que em uma multidão incontável de pessoas, dispostas em cores sombrias à beira de um rio, a minha sombra, apenas a minha sombra, dentre tantas, procurava por outra que se lhe assemelhasse, mas aí soava um telefone de um orelhão, que até aquele instante não reparar, e que ficava à margem do mesmo rio, e toda a multidão se encaminhou, atropelando-se uns aos outros às vezes ferindo-se gravemente, todos com o intuito de atender o telefone, mesmo que eu não soubesse por que, poxa, eu também tinha a mesma urgência de atender o tal telefone...”  
Mas notou que a ausência , no auditório, o escutara e o vira, quem sabe com alguma reprovação... Uma irracional e hostil desaprovação, pairando , por todos os cantos do recinto.

Chegou a cogitar em fazer, urdir, tecer alguns gestos à toa, no ar, como um aprendiz canhestro de Chaplin. Mas nem nos dias mais animadores de sua vida foi presunçoso sem ter pagado caro, bem caro por isso. Talvez um diretor geral de todos os espetáculos não o permitisse, impunemente. Ele sentiu isso, mas optou por não se desanimar. Seus braços descaíram. 
Juntou as mãos, num gesto em que uma mão abrigava e deixava junto a si a outra, um espaço oco entre ambas, como se a guardar ali uma pomba, viva, saudável.

Inclinou todo o torso, como um cortesão de séculos passados, diante de alguma bela aristocrata a quem distraiu de modo diverso, durante um lapso. Reergueu o torso, e provavelmente voltou a seu posto, no hall.

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