Sentado na poltrona de
sempre, lá estava ele de novo em seu refúgio. Óculos sobre o
nariz, pernas cruzadas e um velho livro repousando aberto sobre suas
mãos. Os olhos acompanhavam as palavras nervosamente enquanto a mão
direita virava a página quando necessário. Dessa forma o tempo
passava, até o sono aparecer de mansinho e oscilar entre a história
e o sonho. Adormeceu...
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Deu
uma boa olhada em volta e confirmou: estava sozinho. Em certos
momentos, mesmo na boa companhia de sua esposa, tinha a necessidade
de refugiar-se dentro de si, de modo que o espírito se emancipasse
do corpo físico por alguns instantes. No entanto, no cômodo ao
lado, um murmúrio quebrou o transe. Andou até lá.
- Pobre
coitado, como pode uma santa criatura nos deixar assim? Não tinha
maldade, não bebia... Homem admirável!
Assim que entrou na sala,
ao ver as comidas e bebidas, não teve dúvidas em desfrutar daquele
banquete e sentar-se ao lado das pessoas que também comiam. As
carnes dos pastéis ainda estavam frescas, mas o vinho parecia
intragável. A massa daquele bolo tinha um aspecto esbranquiçado,
alvíssimo, talvez por não ter tido tempo de ser assado devidamente.
Ficou furioso e desgraçou o péssimo cozinheiro.
- Um ser humano
educado, exemplar vizinho e sempre atencioso com todos. Sua nobreza
era incontestável...
Soltou o prato sobre a mesa e, surpreso,
deparou-se com um caixão repousado bem no meio da sala. Chegou
perto, contemplou o rosto do defunto e então percebeu que já o
conhecia de algum lugar. Mas quem seria? Ao levantar a cabeça, acima
do cadáver, deu de cara novamente com o rosto do falecido.
Tratava-se de seu próprio reflexo reproduzido em um espelho antigo
que adormecia por muitos anos bem no centro daquela parede.
-
Coitado, nem ao menos herdeiros deixou...
- Dizem que morreu por
causa de um Emplastro!
- Emplastro?!
Desconsolado,
entendendo agora com clareza os fatos, retornou em passos lentos para
o local de onde havia saído. As qualidades ficavam e os defeitos já
estavam destinados a ir, junto ao corpo Santo, em direção à cova e
aos vermes que os corroeriam lentamente. - Matamos o tempo; mas o
tempo nos enterra - pensou. Acomodou-se novamente na velha poltrona e
adormeceu.
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- Joaquim,
Joaquim**...
Sem resposta ao chamado, Carolina***, deixando ele
então descansar, apenas recolhe o livro abandonado sobre as pernas
do marido, fecha-o e observa:
- Hum, Memórias Póstumas de Brás
Cubas...
PS: Esse conto foi premiado
como primeiro cololocado no Concurso literário que comemorava os 100
anos da morte de Machado de Assis, os 100 anos de nascimento de
Guimarães Rosa e Cyro Martins, pela UNISC - Universidade de Santa
Cruz do Sul, no ano de 2008.
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