sábado, 10 de novembro de 2012

O morto - por Dilso José dos Santos

Sentado na poltrona de sempre, lá estava ele de novo em seu refúgio. Óculos sobre o nariz, pernas cruzadas e um velho livro repousando aberto sobre suas mãos. Os olhos acompanhavam as palavras nervosamente enquanto a mão direita virava a página quando necessário. Dessa forma o tempo passava, até o sono aparecer de mansinho e oscilar entre a história e o sonho. Adormeceu...


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Deu uma boa olhada em volta e confirmou: estava sozinho. Em certos momentos, mesmo na boa companhia de sua esposa, tinha a necessidade de refugiar-se dentro de si, de modo que o espírito se emancipasse do corpo físico por alguns instantes. No entanto, no cômodo ao lado, um murmúrio quebrou o transe. Andou até lá.
- Pobre coitado, como pode uma santa criatura nos deixar assim? Não tinha maldade, não bebia... Homem admirável!
Assim que entrou na sala, ao ver as comidas e bebidas, não teve dúvidas em desfrutar daquele banquete e sentar-se ao lado das pessoas que também comiam. As carnes dos pastéis ainda estavam frescas, mas o vinho parecia intragável. A massa daquele bolo tinha um aspecto esbranquiçado, alvíssimo, talvez por não ter tido tempo de ser assado devidamente. Ficou furioso e desgraçou o péssimo cozinheiro.
- Um ser humano educado, exemplar vizinho e sempre atencioso com todos. Sua nobreza era incontestável...
Soltou o prato sobre a mesa e, surpreso, deparou-se com um caixão repousado bem no meio da sala. Chegou perto, contemplou o rosto do defunto e então percebeu que já o conhecia de algum lugar. Mas quem seria? Ao levantar a cabeça, acima do cadáver, deu de cara novamente com o rosto do falecido. Tratava-se de seu próprio reflexo reproduzido em um espelho antigo que adormecia por muitos anos bem no centro daquela parede. 
- Coitado, nem ao menos herdeiros deixou...
- Dizem que morreu por causa de um Emplastro!
- Emplastro?! 
Desconsolado, entendendo agora com clareza os fatos, retornou em passos lentos para o local de onde havia saído. As qualidades ficavam e os defeitos já estavam destinados a ir, junto ao corpo Santo, em direção à cova e aos vermes que os corroeriam lentamente. - Matamos o tempo; mas o tempo nos enterra - pensou. Acomodou-se novamente na velha poltrona e adormeceu. 
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- Joaquim, Joaquim**...
Sem resposta ao chamado, Carolina***, deixando ele então descansar, apenas recolhe o livro abandonado sobre as pernas do marido, fecha-o e observa:
- Hum, Memórias Póstumas de Brás Cubas...

PS: Esse conto foi premiado como primeiro cololocado no Concurso literário que comemorava os 100 anos da morte de Machado de Assis, os 100 anos de nascimento de Guimarães Rosa e Cyro Martins, pela UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul, no ano de 2008.

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