Os pássaros falam a outros
pássaros. Mas o que os outros pássaros escutam? Que mensagens
trocam?
Desde criança meu interesse,
minha paixão por eles só fez crescer, se intensificar. Meu pai, já
falecido, era diretor do zoológico de abdala, no distrito de zafir.
Às vezes escrevia versos, sem pretensão maior que revelar a si
mesmo aspectos de si mesmo. Talvez eu tenha herdado dele esta
atração. Ele ainda não tinha morrido, e tínhamos, juntos,
montado, com tela fina e resistente, um apiário muito bom, com ramos
semelhando os naturais para repouso dos corpos alados, entre um voo e
outro, entre um entardecer e outro amanhecer.
Porém eu viagei. Para uma
região ao norte de Hackburk, um lugar bastante frio e desolador, por
motivo de que lá continuaria meus estudos, que a essa época
tinham-se encaminhado para a medicina, e suas práticas alternativas.
Em um porto do extremo oriente usei pela primeira vez o ópio. Fiquei
então preso a essa droga por mais de quinze anos. A droga gostou de
mim, tanto quanto eu dela. Isso é tudo o que tenho a dizer desta
convivência, que depois rompi graças ao auxílio de alguns xamãs e
dervixes hindús, que moravam em extrema solidão nas montanhas do
tibet.
A passagem do tempo. A nível
cósmico não há direita ou esquerda, embaixo ou acima. Como
consultar um relógio cavalgando um cometa? Por vezes estas
perguntas, sobre pássaros, sobre astros, e outras muitas mais (as
folhas das árvores são todas diferenciadas entre si e se sobrepõem
exatamente, de modo a cada qual receber sua quota de luz solar, e não
há nisso uma estupefaciente harmonia? Quantas vezes por dia um homem
mantém exatamente em imobilidade suas mãos e dedos? Etc). Enfim,
dispomos de poucas noites e dias. O vaso de nossos corpos verte sobre
o chão, o ar e o céu, até a última gota, doce ou amarga, com a
rapidez de um sonho em que julgamos estar acordados. À superfície
deste vaso há desenhos, que a nós parecem inteligíveis, mas não o
são. Os desenhos figuram nossa movediça fisionomia, o fulgor opaco
de nossas pupilas, a agitação muitas vezes sem paz e sem quietude
das palavras com as quais trocamos mensagens cifradas com os outros
mortais. E a vida continua. Esse barco em mar profundo navegando,
ocupado em todos os espaços, do porão ao convés e mesmo pendurados
às cordas dos mastros, por passageiros estrangeiros, alienígenas
uns para com os outros. O amor, religioso, apaixonado por uma
mulher, o amor ao conhecimento, às artes e ciências, o amor à
condição humana, que se move entre o mais abjeto e o mais sublime,
essas fortes afeições podem ser vir de ponte, segura ou insegura,
para contatar as almas e corpos que, de outro modo estariam
condenados à perpétua solidão.
Transcorreu boa parte de minha
vida. Um tanto de grama ressequida à qual consome uma chama
intangível, mas sempre, inelutavelmente, exterminadoramente,
atuante. Uma viagem de trem cujos trilhos iam aparecendo
miraculosamente diante de mim, conforme eu pensava que decidia ir
para lá ou para cá (em verdade eu e o trem é que o decidíamos,
sempre, e eu nunca soube no que se constituía meu trem). Envelheci.
Atingi a marca , o limite dos cinquenta anos. Aos cinquenta anos um
homem se vê correndo, com os ossos já enfraquecidos, a levar uma
mensagem urgente da batalha de maratona. Não sabe se o papiro que
leva em um alforge contém alguma mensagem. Estará a mensagem
simplesmente em branco, e lhe deram este encargo apenas para testar
sua resistência à vida e à morte? Não sabe por que é obrigado a
correr através de um deserto aparentemente sem fim, até uma nova
fronteira, que apenas se chama fronteira porque há ali um gole de
água, um novo prato de comida, e um negociante de olhos mortos que
ostenta um sorriso fixo e inerte, enquanto põe notas de papel e
moedas de cobre em uma caixa.
Às vezes, nestes albergues
provisórios (estou convicto de que desapareciam, literalmente,
miragens apenas, de fato miragens que, por uma mágica assumiam por
um lapso a condição de coisa física, material. Eu deixava pontes
queimadas atrás de mim, frotas de barcos incendiando-se e
refletindo-se em águas verde-azuladas com brilhos fugitivos, estes
também, miragens, mas por um débil instante que sempre me pareceu
saudoso mesmo antes de ocorrerem, corpóreos, máscaras do aspecto de
tudo afixadas ao rosto de tudo e de nada, a carne e os ossos de tudo
e nada derretendo-se sob tais máscaras) nestes albergues eu
encontrava uma mulher sonolenta ou embriagada, com ar e atitude de
quem permaneceu tanto tempo mergulhada em águas desesperadas, águas
corrosivas para qualquer coração e sentimento, e então nós nos
abraçávamos, e eu deixava em seu ventre uma semente. E tudo o que
havia entre nós era o sentimento de que havíamos cumprido uma
triste mas imperiosa obrigação, para satisfação de nossos corpos
sedentos, e passageira mas notável (como se nota , da margem, no
horizonte, barcos em chamas afundarem, ao se tocarem por acaso)
consternação de nossos espíritos. Nossos pés os pés de monges
acostumados a brasas. Os pés doem. Mas doem sempre, não importa em
que eles pisem.
Foi então que cheguei a
Barikova. Era uma pequena cidade ao norte da antiga província de
Homt. Muito me felicitei quando obtive emprego, sem muita
dificuldade. Encontrei-me com o soberano do lugar, que vivia
atormentado por uma febre sem nome ou remédio conhecido.
Ministrei-lhe, um tanto ao azar, uma substância que sempre trazia
comigo como panaceia, raiz de ruibarbo misturada a essência de pó
de chifre de unicórnio (encontrei um, morto, coberto de frias cinzas
vulcânicas, em uma ruela, perdida, de uma cidade em ruínas, no meio
de um dos tantos desertos por que passei. Havia talvez vultos
sombrios que me ameaçavam, mas eu dizia a mim mesmo que estava a ter
um pesadelo.e então, depois que cortei o chifre e o pus atado ao
dorso de meu camelo, ao invés de eu desaparecer do delírio que eu
ainda sustentava com um forte resquício de razão e lucidez, então
foi a cidade mesma que se desintegrou, e vi-me , junto ao animal
(que resiste ao deserto não só por armazenar água, mas porque
habituou-se a não ser atingido por nenhuma noção ou impressão
febrecitante proveniente de tantas dunas de areia ardentes, de dia, e
gélidas à noite) vi-me junto a meu camelo. Olhei a minha volta. Um
imenso e infinito deserto, em que um vento inconstante varria,
aparentemente em vão, talvez motivado por um obscuríssimo propósito
que ninguém saberia sequer intuir.
Mas, ah, o chifre de unicórnio
continuou comigo. E ao começar meu trabalho, estando o soberano já
plenamente curado e exultante com relação a minha humilde pessoa,
foram-me dadas orientações, à entrada do palácio, para chegar até
meu objetivo. Com a maior naturalidade, distração e boa vontade,
carreguei meu sangue turvo um tanto cansado de circular entre meus
ossos, e atravessei corredores e câmaras, salões com pilares
cobertos de ouro e marfins azuis decorando pisos com motivos de
peixes oníricos diversos, disperso em tudo um odor que associei a
sementes de lotus lentamente incineradas talvez, alto-relevos de
dragões cobrindo cúpulas , dragões cuja mirada em efígie poderia
congelar do mais puro terror a quem tivesse a ousadia de
contemplá-los. Deles desviei meus olhos, e afinal entrei, como me
fora indicado, na alcova da princesa heda, não sem antes ter
caminhado bem, muito lentamente, como uma sombra do sol sobre um
dolmen, para não chamar a atenção de dois grifos que dormitavam
nos umbrais. E foi então, já velho, um tanto gasto e desanimado por
tantas recordações infelizes, muito infelizes, que o amor mais
tirânico, dominador, escravagista e fulminante tomou conta de mim.
Heda tinha um corpo de Vênus,
que o tecido fino e delicado de uma renda finíssima, semelhante a
teias de aranhas acumuladas a delicados e gentilmente dançantes
ramos, nelas acumulado um orvalho revigorantemente fresco, com um
brilho de lágrimas que só poderiam ter caído de algum céu. Seu
rosto era tão belo que não sei descrevê-lo. Prometia a ventura
divina e ao mesmo tempo a paixão sensual da mais perfeita concubina,
em haréns alados, que alguns poucos poetas e visionários, talvez
tenham o supremo privilégio, ao morrerem, de experimentar.
Entretanto, este foi o momento
mais triste de minha vida. Tão triste que eu senti claramente que
meu coração parou, se fez em pedaços, pedaços a mais do que ainda
havia de intocado na fonte de minha sensibilidade, pedaços já
dispersos por tantos amores contrariados. Sim. Ela olhou no meu
rosto, viu minha incurável paixão, que em um só átimo tinha
nascido e se elevado a alturas sublimes e quase intoleráveis, e
disse, com a voz de uma criança caprichosa que torce e quebra o
pescoço ou o ventre de um brinquedo indiferente: “Eu não te
amo”.
E então, mal iniciada a lição,
que versaria sobre astrologia esotérica antiquíssima (cujos códices
encontrei numa caverna próximo ao mar negro, num dia invernal e
desolador) , mal iniciara eu a falar, percebi que eu tinha perdido a
voz, o poder de enunciar qualquer palavra. Que nunca falaria a
ninguém. Nunca mais a vida para mim teria sabor algum. Mesmo o sabor
do que é insípido (pois o insípido é afinal uma qualidade), nunca
mais teria minha vida brilho, calor, pois o sol do dia e os astros
misteriosos das noites tinham-se apagado e morrido, para sempre, com
suas palavras. Tão poucas palavras. Quatro.
Eu, juntando em mim um último
esforço, guardei comigo, como um homem são mete num saco um rato
infectado com a pior peste, e jamais se separará dele, guardei
aquelas palavras no ouvido do meu ânimo, voltei pelos corredores,
alcovas, salões, pórticos com fontes de cristais e, afinal, estava
de volta às ruas da cidade.
O povo inundava o mercado diante
do palácio. Perguntei a um verdureiro por onde se chegava ao
deserto mais próximo.
E no mesmo dia eu já tinha
voltado à minha terra natal.
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