terça-feira, 13 de novembro de 2012

Terra natal - um conto de Glauco Schneider

Os pássaros falam a outros pássaros. Mas o que os outros pássaros escutam? Que mensagens trocam? 
Desde criança meu interesse, minha paixão por eles só fez crescer, se intensificar. Meu pai, já falecido, era diretor do zoológico de abdala, no distrito de zafir. Às vezes escrevia versos, sem pretensão maior que revelar a si mesmo aspectos de si mesmo. Talvez eu tenha herdado dele esta atração. Ele ainda não tinha morrido, e tínhamos, juntos, montado, com tela fina e resistente, um apiário muito bom, com ramos semelhando os naturais para repouso dos corpos alados, entre um voo e outro, entre um entardecer e outro amanhecer.

Porém eu viagei. Para uma região ao norte de Hackburk, um lugar bastante frio e desolador, por motivo de que lá continuaria meus estudos, que a essa época tinham-se encaminhado para a medicina, e suas práticas alternativas. Em um porto do extremo oriente usei pela primeira vez o ópio. Fiquei então preso a essa droga por mais de quinze anos. A droga gostou de mim, tanto quanto eu dela. Isso é tudo o que tenho a dizer desta convivência, que depois rompi graças ao auxílio de alguns xamãs e dervixes hindús, que moravam em extrema solidão nas montanhas do tibet.
A passagem do tempo. A nível cósmico não há direita ou esquerda, embaixo ou acima. Como consultar um relógio cavalgando um cometa? Por vezes estas perguntas, sobre pássaros, sobre astros, e outras muitas mais (as folhas das árvores são todas diferenciadas entre si e se sobrepõem exatamente, de modo a cada qual receber sua quota de luz solar, e não há nisso uma estupefaciente harmonia? Quantas vezes por dia um homem mantém exatamente em imobilidade suas mãos e dedos? Etc). Enfim, dispomos de poucas noites e dias. O vaso de nossos corpos verte sobre o chão, o ar e o céu, até a última gota, doce ou amarga, com a rapidez de um sonho em que julgamos estar acordados. À superfície deste vaso há desenhos, que a nós parecem inteligíveis, mas não o são. Os desenhos figuram nossa movediça fisionomia, o fulgor opaco de nossas pupilas, a agitação muitas vezes sem paz e sem quietude das palavras com as quais trocamos mensagens cifradas com os outros mortais. E a vida continua. Esse barco em mar profundo navegando, ocupado em todos os espaços, do porão ao convés e mesmo pendurados às cordas dos mastros, por passageiros estrangeiros, alienígenas uns para com os outros. O amor, religioso, apaixonado por uma mulher, o amor ao conhecimento, às artes e ciências, o amor à condição humana, que se move entre o mais abjeto e o mais sublime, essas fortes afeições podem ser vir de ponte, segura ou insegura, para contatar as almas e corpos que, de outro modo estariam condenados à perpétua solidão.
Transcorreu boa parte de minha vida. Um tanto de grama ressequida à qual consome uma chama intangível, mas sempre, inelutavelmente, exterminadoramente, atuante. Uma viagem de trem cujos trilhos iam aparecendo miraculosamente diante de mim, conforme eu pensava que decidia ir para lá ou para cá (em verdade eu e o trem é que o decidíamos, sempre, e eu nunca soube no que se constituía meu trem). Envelheci. Atingi a marca , o limite dos cinquenta anos. Aos cinquenta anos um homem se vê correndo, com os ossos já enfraquecidos, a levar uma mensagem urgente da batalha de maratona. Não sabe se o papiro que leva em um alforge contém alguma mensagem. Estará a mensagem simplesmente em branco, e lhe deram este encargo apenas para testar sua resistência à vida e à morte? Não sabe por que é obrigado a correr através de um deserto aparentemente sem fim, até uma nova fronteira, que apenas se chama fronteira porque há ali um gole de água, um novo prato de comida, e um negociante de olhos mortos que ostenta um sorriso fixo e inerte, enquanto põe notas de papel e moedas de cobre em uma caixa.
Às vezes, nestes albergues provisórios (estou convicto de que desapareciam, literalmente, miragens apenas, de fato miragens que, por uma mágica assumiam por um lapso a condição de coisa física, material. Eu deixava pontes queimadas atrás de mim, frotas de barcos incendiando-se e refletindo-se em águas verde-azuladas com brilhos fugitivos, estes também, miragens, mas por um débil instante que sempre me pareceu saudoso mesmo antes de ocorrerem, corpóreos, máscaras do aspecto de tudo afixadas ao rosto de tudo e de nada, a carne e os ossos de tudo e nada derretendo-se sob tais máscaras) nestes albergues eu encontrava uma mulher sonolenta ou embriagada, com ar e atitude de quem permaneceu tanto tempo mergulhada em águas desesperadas, águas corrosivas para qualquer coração e sentimento, e então nós nos abraçávamos, e eu deixava em seu ventre uma semente. E tudo o que havia entre nós era o sentimento de que havíamos cumprido uma triste mas imperiosa obrigação, para satisfação de nossos corpos sedentos, e passageira mas notável (como se nota , da margem, no horizonte, barcos em chamas afundarem, ao se tocarem por acaso) consternação de nossos espíritos. Nossos pés os pés de monges acostumados a brasas. Os pés doem. Mas doem sempre, não importa em que eles pisem.
Foi então que cheguei a Barikova. Era uma pequena cidade ao norte da antiga província de Homt. Muito me felicitei quando obtive emprego, sem muita dificuldade. Encontrei-me com o soberano do lugar, que vivia atormentado por uma febre sem nome ou remédio conhecido. Ministrei-lhe, um tanto ao azar, uma substância que sempre trazia comigo como panaceia, raiz de ruibarbo misturada a essência de pó de chifre de unicórnio (encontrei um, morto, coberto de frias cinzas vulcânicas, em uma ruela, perdida, de uma cidade em ruínas, no meio de um dos tantos desertos por que passei. Havia talvez vultos sombrios que me ameaçavam, mas eu dizia a mim mesmo que estava a ter um pesadelo.e então, depois que cortei o chifre e o pus atado ao dorso de meu camelo, ao invés de eu desaparecer do delírio que eu ainda sustentava com um forte resquício de razão e lucidez, então foi a cidade mesma que se desintegrou, e vi-me , junto ao animal (que resiste ao deserto não só por armazenar água, mas porque habituou-se a não ser atingido por nenhuma noção ou impressão febrecitante proveniente de tantas dunas de areia ardentes, de dia, e gélidas à noite) vi-me junto a meu camelo. Olhei a minha volta. Um imenso e infinito deserto, em que um vento inconstante varria, aparentemente em vão, talvez motivado por um obscuríssimo propósito que ninguém saberia sequer intuir.
Mas, ah, o chifre de unicórnio continuou comigo. E ao começar meu trabalho, estando o soberano já plenamente curado e exultante com relação a minha humilde pessoa, foram-me dadas orientações, à entrada do palácio, para chegar até meu objetivo. Com a maior naturalidade, distração e boa vontade, carreguei meu sangue turvo um tanto cansado de circular entre meus ossos, e atravessei corredores e câmaras, salões com pilares cobertos de ouro e marfins azuis decorando pisos com motivos de peixes oníricos diversos, disperso em tudo um odor que associei a sementes de lotus lentamente incineradas talvez, alto-relevos de dragões cobrindo cúpulas , dragões cuja mirada em efígie poderia congelar do mais puro terror a quem tivesse a ousadia de contemplá-los. Deles desviei meus olhos, e afinal entrei, como me fora indicado, na alcova da princesa heda, não sem antes ter caminhado bem, muito lentamente, como uma sombra do sol sobre um dolmen, para não chamar a atenção de dois grifos que dormitavam nos umbrais. E foi então, já velho, um tanto gasto e desanimado por tantas recordações infelizes, muito infelizes, que o amor mais tirânico, dominador, escravagista e fulminante tomou conta de mim.
Heda tinha um corpo de Vênus, que o tecido fino e delicado de uma renda finíssima, semelhante a teias de aranhas acumuladas a delicados e gentilmente dançantes ramos, nelas acumulado um orvalho revigorantemente fresco, com um brilho de lágrimas que só poderiam ter caído de algum céu. Seu rosto era tão belo que não sei descrevê-lo. Prometia a ventura divina e ao mesmo tempo a paixão sensual da mais perfeita concubina, em haréns alados, que alguns poucos poetas e visionários, talvez tenham o supremo privilégio, ao morrerem, de experimentar.
Entretanto, este foi o momento mais triste de minha vida. Tão triste que eu senti claramente que meu coração parou, se fez em pedaços, pedaços a mais do que ainda havia de intocado na fonte de minha sensibilidade, pedaços já dispersos por tantos amores contrariados. Sim. Ela olhou no meu rosto, viu minha incurável paixão, que em um só átimo tinha nascido e se elevado a alturas sublimes e quase intoleráveis, e disse, com a voz de uma criança caprichosa que torce e quebra o pescoço ou o ventre de um brinquedo indiferente: “Eu não te amo”.
E então, mal iniciada a lição, que versaria sobre astrologia esotérica antiquíssima (cujos códices encontrei numa caverna próximo ao mar negro, num dia invernal e desolador) , mal iniciara eu a falar, percebi que eu tinha perdido a voz, o poder de enunciar qualquer palavra. Que nunca falaria a ninguém. Nunca mais a vida para mim teria sabor algum. Mesmo o sabor do que é insípido (pois o insípido é afinal uma qualidade), nunca mais teria minha vida brilho, calor, pois o sol do dia e os astros misteriosos das noites tinham-se apagado e morrido, para sempre, com suas palavras. Tão poucas palavras. Quatro.
Eu, juntando em mim um último esforço, guardei comigo, como um homem são mete num saco um rato infectado com a pior peste, e jamais se separará dele, guardei aquelas palavras no ouvido do meu ânimo, voltei pelos corredores, alcovas, salões, pórticos com fontes de cristais e, afinal, estava de volta às ruas da cidade.
O povo inundava o mercado diante do palácio. Perguntei a um verdureiro por onde se chegava ao deserto mais próximo.
E no mesmo dia eu já tinha voltado à minha terra natal.

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