segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Mancha no diploma

por Eloir Guedes


Cultivamos no Brasil a crença geral de que proporcionar boa instrução regular aos nossos filhos os livrará dos trabalhos desqualificados que seus pais, a maioria analfabetos ou quase, tivemos que enfrentar.
Trabalhos duros com salários aviltantes que resultam em condições de vida precárias em quase todos os sentidos. Pode não ser verdade para muita gente: desde que venha ao mundo com pele clara e cabelos lisos. Melhor ainda se além destas "virtudes" o sobrenome denunciar origem européia ou anglosaxã.


Recebi a visita de um jovem negro, recém formado em Serviço Social, com quem acostumei-me a longos e proveitosos diálogos. Além da prosa interessante concedeu-me o privilégio de trocar idéias com alguém que tem idade para ser seu pai. Ele confirmou-me uma verdade da discriminação racial que eu percebo há muito.
Dei-lhes os parabéns, lembrando que agora seria mais fácil. Ele fez-me ver que não é assim. A competição no mercado de trabalho inverte o racismo, mesmo de alguém sem preconceito. Como dar ao negro um cargo funcional elevado sem "ofender" o outro da "raça superior"? Melhor não comprar essa briga: lugar de branco é na chefia, negro vem depois.
Já testemunhei fato semelhante. Um negro formado em Direito estabelecido no centro, foi procurado por outro amigo meu. Embora conhecidíssimo e pessoa de destaque, nenhum branco "soube" informar o seu endereço.
O jovem contou-me que, nos dias próximos ao de sua formatura, sofreu o medo de frustrar pessoas que mesmo pouco conhecidas e não-negras torciam por ele. O recebimento do canudo dependia da entrega de um trabalho ainda não pronto. Mas superou a dolorosa passagem, cumpriu a tarefa em tempo hábil. Seria terrível ouvir "coisa de negro, só podia dar nisso".
Na noite marcada para a cerimônia contou não mais do que quarenta negros entre os quase quinhentos no auditório. Seis da sua própria família. Achou natural: o negro é educado para só comparecer a eventos de sua gente. Só negros audaciosos se misturam, casam com brancas e levantam a cabeça quando ofendidos.
Há poucas alegrias em ser negro, mas nem tudo são pedras em nossa vida. O ato de entrega dos diplomas significava o reconhecimento do esforço em busca da realização, cujo reflexo mais gratificante era o estímulo implícito aos mais jovens a seguir seu exemplo de fé e perseverança. Era um dos poucos negros e pobres a chegar ali.
O mais importante, idsse-me, era a satisfação íntima dos familiares. Sentia-se como se os presenteasse com algo que nunca imaginavam receber. Um presente que ningue´m nem nada poderia lhes tirar.
Chorou ao receber o abraço do primo cujo pai já falecido o considerava também seu filho e o incentivava a estudar: o saber não ocupa lugar. E seu coração acelerou ao ver sorridente entre os seus, a namorada que o acompanha há quatro anos. Ela é loura, filha de pais de origem alemã.

* Crônica publicada na coletância Unisc: uma trajetória e muitas lembranças, Volume 3, 2005.

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